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Caminhos decoloniais na América Latina

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Nós xaverianos e xaverianas, membros do Centro de Estudos Missionários Latino Americano (CEMLA), reunimo-nos em Tabatinga, AM, de 2 a 6 de março, para o nosso encontro anual, hóspedes da Diocese de Alto Solimões. Estavam presentes: Rafael López Villaseñor, Estêvão Raschietti e Elisabete Miguel Espinhara das Regiões Xaverianas do Brasil Sul; Francisco Xavier Martínez Rodrigo, Pascal Atumissi Bekububo e Tea Frigerio do Brasil Norte; Gerardo Custodio López do México; Zacarias Tamejon da Colômbia; Dom Adolfo Zon Pereira, Pino Leoni, Paolo Gallo, Alberto Panichella e a leiga xaveriana Marta Barral Nieto, missionárias e missionários nesta igreja local, que nos acolheram com muita disposição e carinho.

  1. A ocasião de nos encontramos aqui na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, no coração da Amazônia, à beira do Rio Solimões, marcou de maneira muito especial esse nosso encontro. O CEMLA não quer ser apenas um laboratório de ideias, mas uma experiência viva de proximidade e de interação entre nós e as realidades missionárias concretas e específicas, mesmo percebidas e partilhadas no tempo mágico de uma visita. Acreditamos que estabelecer um lugar especial, um tempo programado e um encontro presencial, é imprescindível para elaborar uma reflexão missiológica consistente, relevante e situada. Não há recurso tecnológico ou enredo alternativo que possam substituir e garantir um sentipensar de qualidade, sem essas oportunidades de encontro que implicam compromisso, deslocamento e investimento. Com efeito, tocar com o coração, é parte essencial da maneira de produzir conhecimento neste Continente.

  2. Coincidentemente, logo após a publicação da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia de Francisco, estamos aqui cruzando fronteiras pelo Rio Javari, visitando os confrades de Atalaia do Norte e a comunidade intercongregacional de Islândia no Peru, participando da eucaristia dominical com a comunidade indígena Tikuna em Tabatinga, encontrando os padres do Serviço Jesuíta Panamazônico de Letícia (Colômbia), convivendo o tempo todo com Dom Adolfo, Paolo, Zezinho e Marta, saboreando as comidas e os produtos típicos desta região. Desta maneira, pudemos partilhar uma primeira recepção do Documento do Papa, com seus quatro sonhos: social, cultural, ecológico e eclesial. O último, porém, nos deixou perplexos: uma eclesiologia inepta, uma teologia hierarquizada do ministério ordenado, uma inculturação sem interculturalidade, um protagonismo da mulher remediado. Afinal, que Igreja queremos e para que tipo de missão? A missão é o ponto final de uma igreja ideologicamente preestabelecida, ou o ponto de partida para uma eclesiogênese?

    Sem dúvida, esses empasses fazem parte de um processo gradual de desclericalização, amadurecimento e passagem de uma igreja autorreferencial para uma igreja em saída. Já foi um passo significativo ter colocado essas questões no centro do debate eclesial. Agora o caminho foi traçado: trata-se de dar continuidade com criatividade e ousadia, derrubando barreiras e resistências, dando vida a práticas e consciências verdadeiramente missionárias. Como João Paulo II já tinha afirmado: “impõe-se uma conversão radical da mentalidade para nos tornarmos missionários” (RMi 49).
  1. O tema do encontro sobre o qual nos debruçamos para elaborar os nossos trabalhos, foi a “Missão decolonial”. A missão moderna, assim como nós a conhecemos, é intrinsicamente colonial: nasceu junto à conquista da América do século XVI, se reproduziu ao longo dos séculos como quintessência da dominação ocidental, se repropõe hoje também sob vestes neocoloniais e eurocêntricas dissimuladas. As célebres figuras de missionários e missionárias que defenderam os nativos das garras coloniais não representaram o quadro geral da obra evangelizadora, e à salvaguarda da vida dos pobres e marginalizados da qual se fizeram promotores, não correspondeu quase nunca uma valorização de suas culturas e de suas sabedorias.

    No primeiro artigo, Estêvão Raschietti apresenta os traços teóricos do pensamento decolonial latino-americano, cuja categoria fundamental é a colonialidade do poder. Essa emerge das cinzas do colonialismo como “lado escuro” da modernidade, e se desdobra na colonialidade do saber e do ser, consolidando em diversos níveis uma estrutura hierárquica de classificação, submissão e exploração da população mundial. A tarefa de uma possível missão “decolonial” consiste em desmascarar a cumplicidade da missão junto às relações coloniais, desenvolvendo ferramentas que ajudam a detectar elementos de dominação hegemônica, aprendendo aos poucos a arte da pluralidade, do des-centramento e do diálogo intercultural, rumo a uma transformação anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal.

    Este ultimo e importante aspecto relativo à colonialidade de gênero, é desenvolvido por Tea Frigerio no artigo dedicado à Divina Sabedoria numa interpretação sapiencial feminista da Bíblia, abordada a partir do tema da Amazônia e dos sonhos de Francisco na Exortação Pós-sinodal. O cristianismo sempre foi dominado pela perspectiva masculina. Sua linguagem, seus símbolos, sua estrutura sócio-religiosa são marcados pela lógica patriarcal. A redescoberta de figuras divinas bíblicas femininas, presenças criadoras, cósmicas, transgressoras, que superam fronteiras, que celebram a vida, que brincam, dançam, alimentam, vão de encontro a aspectos profundos da sabedoria dos povos originários, como elementos essenciais para a configuração de um rosto eclesial amazônida.

    O pensamento decolonial deita suas raízes na história ferida dos povos do Continente. Um dos primeiros textos aos quais se faz referência, é o do cronista inca Felipe Guamán Poma de Ayala (1534-1615). Em seu artigo, Geraldo Custodio se concentra na analise da figura 694 da obra monumental Nueva Crónica y Buen Gobierno, que retrata um índio comido por seis feras, representando os algozes colonizadores. Guamán parte exatamente do Evangelho para denunciar esses crimes, e para apontar um possível governo entre povos e sistemas de vida diferentes, pois os valores cristãos já estavam presentes nas culturas indígenas antes da chegada dos europeus, e podiam junto com eles, serem partilhados.

    Por sua vez, o artigo de Beth Espinhara destaca o tema da colonialidade/decolonialidade e a questão afro-brasileira, focalizando as iniciativas educativas que partem das comunidades quilombolas. A educação escolar quilombola faz parte de um movimento pedagógico que leva em conta o aspecto decolonial, cujo principal objetivo é promover o diálogo entre os diversos saberes de forma igualitária. Desta maneira, todos os atores entram em um processo de reeducação, aprendendo mais sobre o racismo e suas várias formas de manifestações, sobre si mesmos, sobre a ancestralidade africana e como ela foi recriada ao longo de uma grande evolução histórica.

    Colonialidade e Amazônia é o assunto tratado pelo artigo de Francisco Xavier Martínez, que depois de resumir a história da colonização da região amazônica, passa em resenha etapas que marcaram uma descolonização da ação evangelizadora, a partir do Vaticano II, Medellín, o Encontro de Santarém (1972), a criação de organismos e instituições autóctones, até o Sínodo Pan-amazônico, cuja palavra chave foi “conversão que vem da escuta”. Esta conversão se expressa em quatro dimensões: pastoral, cultural, ecológica e sinodal. Papa Francisco convidou a indignar-se diante de uma colonização que não para, e a construir redes de solidariedade em diálogo com os povos originários e as culturas tradicionais, levando em conta suas feridas coloniais.

    Um dos principais problemas da missão cristã junto à perspectiva decolonial, é sua mensagem de salvação que apresenta feições hegemônicas e excludentes: a única salvação em Cristo Jesus e a necessidade da Igreja para essa salvação. Rafael López apresenta as principais posturas teológicas do cristianismo em relação às outras religiões, suas implicações e paradigmas, o vaivém da doutrina oficial da Igreja católica. Ainda não temos uma resposta satisfatória. Para construir uma teologia decolonial das religiões é preciso superar um eurocentrismo persistente, desenvolver uma linha teocêntrica como contraponto a um cristomonismo imperante, apontando para uma teologia em diálogo e não apenas do diálogo.

    Enfim, Elisa Silva do México, que não pôde estar presente, nos enviou um belo testemunho de Dom Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal de las Casas, exemplo concreto de uma missão encarnada, desarmada e decolonial junto aos povos indígenas de Chiapas, mostrando-nos que, apesar da terrível oposição da Igreja colonial, caminhos decoloniais que implicam uma profunda reforma das estruturas eclesiais, são possíveis.
  1. Ao tratar desses assuntos, e ao analisar a Carta Testamento de Guido Maria Conforti, por ocasião do ano jubilar prestes a ser celebrado (1921-2021), centramos varias vezes a nossa atenção sobre a única finalidade dos nossos Institutos que é a propagação do Evangelho para a formação de uma única grande família humana pluriversal. Acreditamos que essa missão deve retornar ao centro de nossos anseios, de nossas prioridades e de nossos projetos.

    Classificar as regiões xaverianas da América Latina apenas como presenças de animação missionária-vocacional e formação, é perigosamente redutivo, fruto de uma ótica autorreferencial de manutenção e de uma reflexão missiológica pré-conciliar. De certa maneira, com essa visão podemos reproduzir feições e práticas da missão colonial.

    Contrariamente ao preconceito de muitos, a América Latina apresenta situações de fronteira e perspectivas missionárias perfeitamente cônsonas ao nosso carisma: o lugar onde nos encontramos é a prova. Animação missionária do povo de Deus, acompanhamento e promoção da cultura vocacional, só acontecem neste Continente junto a uma singela prática pastoral. A questão dos “não-cristãos” precisa ser repensada e rearticulada declinando as categorias de pobres e de outros colonialmente dominados, hegemonicamente inferiorizados e mercadologicamente excluídos. Hoje, a emergência agressiva de um globalismo fascista e neoliberal, multiplica e aprofunda sempre mais essas linhas abissais entre povos e pessoas.

    O Sínodo da Amazônia veio para questionar também os institutos missionários em suas práticas, ideologias e estruturas: a missão precisa do missionário, porque a missão é essencialmente proximidade e encontro. Somos chamados hoje a encontrar novos caminhos para fazê-la acontecer.

Tabatinga, 6 de março de 2020

CEMLA
08 Marzo 2020
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