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Um documento vivo, presente em atitudes, palavras e no jeito de ser

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A CARTA TESTAMENTO

A maior beleza da Carta Testamento em minha vida é que eu a conheci muito antes de ler sequer uma linha do seu valioso conteúdo. Tive acesso a boa parte dos ensinamentos e diretrizes da CT a partir da minha própria vivência em comunidade xaveriana desde os meus 11 anos de idade. Os preceitos nela descritos eu tive a graça de receber desde o início da minha vida na igreja. Hoje relendo a CT me recordei inúmeros momentos valorosos que ajudaram a construir meu caráter e formar em mim a pessoa que hoje sou. Sou agraciada, tive muitas oportunidades de aprendizagem e quero partilhar.

Vejo que através de pequenas atitudes dos “filhos” de São Guido Maria Conforti eu aprendi parte dos ensinamentos da CT. Isso é sinal de Deus. Sinal que os missionários consagrados absorveram e transmitem as diretrizes nela contida e que o desejo do coração de São Guido foi ouvido e é vivido.

Desde muito jovem fui assumindo compromissos e responsabilidades dentro da igreja. Recebi o sacramento do Crisma em seguida da catequese na comunidade xaveriana da periferia onde morava, que tem por padroeiro São Francisco Xavier. Ainda com 16 anos assumi com minha amiga Cristina que fez Crisma comigo uma turma de catequese. As catequistas recentes da comunidade estavam cansadas e com outros compromissos, além do que, era uma comunidade carente, com poucos fiéis para trabalhar e uma demanda muito grande. O então pároco, entendendo a necessidade, nos incentivou a assumir a turma, instruindo que fizéssemos formação em paralelo. Lembro que ele me disse: “você e inteligente e tem Amor no coração, dará conta e pode contar com o apoio do tu padre. Essas crianças precisam de ti”. E dois anos depois 40 crianças realizavam a primeira comunhão.

Na minha adolescência na Igreja tive um encontro muito forte com os valores do evangelho e foi em paróquia xaveriana, com padres xaverianos que esses valores foram semeados em meu coração e brotaram, me fazendo aos poucos construir e constituir meu jeito, meus ideais e meus sonhos.

Fui uma jovem atuante na Pastoral da Juventude (PJ), ativa participante dos grupos de ruas nas Campanhas da Fraternidade, Novenas de Natal e outras ocasiões, participei de formações das CEBs, Legião de Maria, CEBI, atuei no Conselho comunitário e trabalhei ainda na Pastoral da Criança bastante motivada por minha mãe Glória e sou idealizadora de um projeto que presenteia crianças carentes na periferia das comunidades xaverianas por ocasião do Natal com roupas, calçados e brinquedos há 16 anos, dentre muitas outras coisas. Talvez o verso de um canto consiga expressar o tipo de valores recebidos por mim e absorvidos que eu vejo que vão de encontro com a CT: "Negros e brancos, índios, mestiços, de todos Deus é Pai, uma só fé, um só Salvador, o mundo evangelizai. Vinde, vede e anunciai!"

Ainda com 16 anos fui de São Paulo capital a pé para Aparecida do Norte/SP para participar do Movimento “Grito dos Excluídos”, sendo oito dias de caminhada.

Em tudo que atuei eu vejo presente a ideia central de fazer Cristo conhecido a mais e mais pessoas e mais que seu nome, o seu Amor misericordioso, Amor do seu Sagrado coração.

Encontrei no pobre, no que passa fome, no necessitado, no diferente, nas crianças e naquele que mais sofre o rosto de Cristo. Aprendi a importância de ser igreja fora da igreja e de buscar trabalhar junto aos sacerdotes no intuito de ser uma igreja que vai ao encontro do outro. Destaco a presença das Pastorais Sociais nas Paróquias Xaverianas.

Tive ótimas oportunidades de ir a muitos lugares: eu já estive na Amazônia/AM, região da Diocese do Bispo Xaveriano Dom Adolfo para conhecer a realidade local e posteriormente, junto com a coordenação LMX (Leigos Missionários Xaverianos) pensar num projeto missionário para os leigos desenvolverem, sendo quem sabe, o nosso primeiro campo de missão; em Abaetetuba/PA, cidade periférica, onde os xaverianos atuam com intensidade e lidam com a pobreza, violência e mazelas ao lado do povo, povo esse muito atuante e participativo. Conheci a Casa Regional do Norte em Belém/PA. E sim, conheço todas paróquias xaverianas do Brasil Sul e o Seminário menor de Londrina/PR e o Seminário de Filosofia em Curitiba/PR. Também conheço o Noviciado em Hortolândia/SP, o Seminário de Laranjeiras do Sul/PR. Tive a alegria de estar no Recanto das Mangueiras/MG. E até em Goioerê/PR, onde há mais de 20 anos os Xaverianos não tem mais missão, eu fui visitar e conhecer o grupo de Leigos Missionários Xaverianos iniciado com ex-seminaristas e suas famílias e voltei dois anos depois a convite do pároco de lá para liderar uma formação missionária para o conjunto de 10 paróquias da região.

Estive na Casa da Direção Geral em Roma, no Vaticano e conheci com meu esposo sua belíssima Capela. Já fui a Ravadese, na pequena igreja onde S. Guido foi batizado e apreciei a linda Matriz de Parma onde foi bispo. Tive a alegria de estar no Santuário de Parma junto com meu esposo e no altar da igreja, diante de S. Guido fiz um pedido muito especial: tenho endometriose, uma doença que limita e dificulta que a mulher possa engravidar... e eu fui atendida na minha prece. Mas sobre o meu milagre por intercessão de S. Guido tenho. Ficamos hospedados na Casa Mãe em Parma e pudemos nos aproximar ainda mais da família xaveriana. Participei também de uma missa numa Paróquia Xaveriana na periferia de Bogotá na Colômbia.

E tive a honra e a benção de participar de dois Capítulos Xaverianos Regionais, em 2014 inclusive com a presença do Superior Geral. Foi um dos dias mais felizes e significativos da minha vida.

Sobre cada lugar onde estive, tenho muitas histórias para contar, mas diante do crucifixo no Santuário de Parma, senti especial ardor no coração; é o mesmo crucifixo que cativou S. Guido. E ao contemplar essa mesma cruz, desceu lágrimas dos olhos ao imaginar ele ainda menino se apaixonando por Cristo e ainda adolescente conhecendo a história de São Francisco Xavier e tão logo sonhando audaciosamente com a missão além-fronteiras, com a missão na China. Chorei e me emocionei, por ver realizado seu sonho com tantos Institutos nos quatro continentes da Terra e por eu, uma mulher da periferia do Brasil, me senti parte também da realização desse sonho, membro dessa família e junto ainda sonhar em levar o Amor de Cristo a muito mais pessoas.

Tem um elemento que não consta na CT, que eu entendo como muito motivador e cativante: é o olhar do próprio S. Guido. Quem o retratou primeiramente teve a capacidade de transmitir no seu olhar um imenso Amor a Cristo e aos irmãos. Ao olhar sua imagem tenho a sensação de estar sendo olhada, que ele olha dentro dos meus olhos e por muitas vezes quando esmoreci, eu olhei pra sua imagem e parecia que ele mesmo estava diante de mim, me animando e me lembrando do meu compromisso de batizada, que sou uma filha amada do Pai e assim, recordo também sua história de vida, sua doença, e todas dificuldades que superou. Se você está lendo esse texto e nunca olhou uma imagem, seja por foto, pintura ou estátua, sugiro que o faça: eu vejo muita ternura, eu vejo nele o olhar acolhedor daquele que nos amou primeiro.

Lembro o padre que chegava bem antes do horário da missa para receber o povo, e que em um abraço acolhedor parecia preencher as dúvidas, os medos e já antes de iniciar a celebração havia acalmado o coração inquieto apenas com um gesto.

Tenho comigo também, bem apertadinho no peito o gesto de dois leves tapas no rosto, como um chamar atenção com carinho, de um sacerdote humilde, de mente aberta, disposto a trabalhar, um homem incansável até seus 90 anos, que teve toda sua vida pautada no Evangelho de Jesus e anunciando sua Boa Nova, denunciando as injustiças, se pondo ao lado dos pobres, dos marginalizados, dos mais desprezados e vulneráveis da sociedade. Acho que essa é a pessoa pela qual eu tive mais admiração na minha vida e tive a honra de ter ele segurando minhas mãos minutos antes da cerimônia do meu matrimônio e rezando comigo para que o sacramento trouxesse mais alegria e força à minha união. Além do que foi junto com ele que celebrei com meus irmãos, familiares e amigos as Bodas de Prata dos meus pais na periferia de São Paulo e que 25 anos antes ele mesmo foi o celebrante do matrimônio no interior de Minas Gerais. Um homem preocupado com a natureza, com os excluídos, comprometido com o povo. Um homem de Deus, carinhoso, presente e verdadeiro, que chamava a atenção sem medo de aborrecer – era direto, de modo que cada vez que eu o ouvia falar sobre qualquer assunto, parecia estar numa sala de aula diante de um professor especialista dada tamanha a convicção que apresentava.

Uma coisa que eu acho muito bonito na família xaveriana, é que não há a exaltação da pessoa. O padre tem sua autoridade, seus deveres e responsabilidades, mas não se coloca acima das pessoas. Compreende, aqui na cultura brasileira a importância de estar à frente, de “puxar”, de tomar a iniciativa das ações. E mesmo assim faz com que as pessoas participantes, que colaboram na igreja falem e sejam ouvidas, sintam-se ao lado do padre e não abaixo, que permite e motiva as pessoas a apresentarem suas ideias, anseios e opiniões na direção das comunidades. Um xaveriano nunca se põe ao centro ou se faz o centro das atenções, não se faz impositivo por sua vontade, mas se faz entender por seu exemplo e se faz seguir por coerência. Um xaveriano não espera e não aceita privilégios por ser sacerdote. Se alimenta junto do povo, normalmente não separa uma mesa só para padres em encontros, eventos ou assembleias, mas se põe junto do povo. A palavra ensina, mas o testemunho arrasta ao seguimento. Está na CT (6): “ninguém pretenda isenções e privilégios por serviços prestados e cargos ocupados na Congregação”. Trecho que valoriza o Evangelho de Jesus, quando o próprio disse: “Eu não vim para ser servido e sim para servir.”

De fato eu conheci o documento da CT, as Constituições e tive uma formação mais densa, nos últimos 10 anos com o Laicato Xaveriano. E na primeira Assembleia que foi dirigida aos leigos de várias cidades onde os xaverianos tiveram missão e também à ex-seminaristas; e foi lá que encontrei mais pessoas com um sonho em comum: ser leigo e missionário e possibilitar uma missão “fora” ad gentes como leigo e com carisma próprio, o carisma xaveriano. E aspirei isso como objetivo de vida, da minha vida: ser leiga missionária xaveriana.

Passei em minha vida por duas situações de muito desespero e tristeza e encontrei nas palavras, no apoio e até no silêncio orante dos padres xaverianos, força e ânimo para encontrar o Amor de Cristo em mim e por mim e seguir com fé, mesmo diante de acontecimentos tão bruscos que acontecera comigo. Enfim, toda minha vida me vejo, acolhida pela família xaveriana, motivada por ela e parte dela. E foi São Guido com uma visão a frente do seu tempo, que antecipou uma vertente do Vaticano II, a abertura da Igreja, com seu Instituto Missionário indo ao encontro dos não cristãos e não por imposição da fé católica, mas com respeito as diferentes culturas e com intenso Amor pela humanidade, levar os ensinamentos de Jesus.

Só posso dizer que sou muito grata à Deus por ter minha formação na periferia de São Paulo onde com grande relevância os missionários xaverianos chegaram há mais de 40 anos. Ah sim! A vida foi boa comigo. Deus me permitiu bons encontros. Sou grata pelas escolhas que fui fazendo no decorrer do caminho e que me permitiram chegar até aqui e por cada pessoa que encontrei e que de um jeito ou de outro contribuiu para minha jornada.

Porque sim, não é exatamente o lugar que se vai ou se conhece que faz a real diferença, mas sim as pessoas que se encontra, a cultura que se pode absorver e o que isso é capaz de tocar em você, transformar seu olhar a se colocar no lugar do outro e o seu coração a enxergar um novo prisma vendo Deus, buscando Deus e amando Deus em tudo e em todos (CT 10).

A CT não é um documento escrito, publicado e esquecido, que fica numa prateleira ou em uma gaveta. É um documento vivo, presente nos xaverianos em suas atitudes, palavras, no jeito de ser. É assim que uma leiga, de 37 anos, que há mais de 25 trabalha com os xaverianos vê e sente.

Cada um tem seu encontro pessoal com Deus. O ouvir do seu chamado a vocação é único e pessoal. Pode haver pessoas que o incentive, que lhe mostre o caminho, que o ajude... Tenho certeza que cada padre xaveriano tem uma bela história para contar de como se deu esse encontro com sua vocação inicialmente. E por mais distinta que seja a cultura de cada um, creio que o Amor de Cristo é o que há em comum no chamado. Digo isso, pois em todos os xaverianos que tive a oportunidade de conhecer, com maior ou menor ênfase me fizeram notar em suas atitudes e palavras o Amor de Cristo, o Amor de Cristo que nos impulsiona a amar e servir com disposição e alegria.

Um viva aos 100 anos da Carta Testamento e que a benção de Deus esteja sobre a Família Xaveriana!

São Paulo, 25 de junho de 2020.

Patrícia da Silva Nunes de Araujo Silva                                                               

Patrícia da Silva
09 September 2020
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