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CONCÍLIO VATICANO II: 50 ANOS A dimensão (da renovação) eclesial, pastoral e missionária: cenário e apelos

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Concílio Vaticano II: 50 anos
A dimensão (da renovação) eclesial, pastoral e missionária: cenário e apelos

de Estêvão Raschietti, sx 

Introdução

Lembrar hoje do Vaticano II não deve representar para a Igreja Católica a comemoração de uma recorrência qualquer, nem tampouco e simplesmente a celebração da memória de um evento marcante, importante, sem dúvida, único na história. A irrupção inesperada na cena eclesial do pontificado de Francisco, possa talvez suscitar mais interesse numa apreciação dos desafios e das perspectivas para a missão da Igreja hoje. Contudo, Papa Francisco nada mais faz que colocar brilhantemente em primeiro plano os anseios, o espírito e as intuições lançadas pelo Vaticano II, tendo que lidar com as mesmas resistências e os mesmos acirrados rechaços que caracterizaram a época conciliar e pós-conciliar, e que hoje estão nas sombras, mas continuam, mais do que nunca, de tocaia. O Concílio foi o evento-chave no qual a Igreja redefiniu radicalmente seu compromisso essencial e profético diante do mundo de hoje, inaugurando uma época de transição de uma cristandade fechada e autocomplacente para uma igreja mundial e missionária.[1] A que ponto está o conjunto da Igreja nesta travessia 50 anos depois? A Igreja no seu conjunto encarou de verdade a dimensão da renovação, a profundidade da conversão e o tamanho da transformação eclesial, pastoral e missionária proposta pelo Vaticano II, ou domesticou sua recepção? 

A atormentada recepção

Convocados em períodos de crise, os Concílios foram, na caminhada da Igreja, autênticas pedras de toques, eventos participativos de tomadas de decisões que provocaram, na maioria das vezes, mudanças paradigmáticas na maneira de pensar, entender, interpretar e falar sobre a fé; sobretudo em questões vitais como a Palavra de Deus, a pessoa de Jesus, a pessoa humana, a Igreja, os ministérios, a história, o mundo, as culturas, a salvação, a redenção e muitas outras realidades teológicas. Os processos de recepção destes acontecimentos por parte do Povo de Deus e de suas lideranças, sempre foram demorados e complicados desde o Concílio de Jerusalém (cf. Gal 2,1-14). Fala-se, por exemplo, do famoso Concílio de Calcedônia (451), no qual foram debatidas importantíssimas e dramáticas questões sobre a natureza humana e divina de Jesus Cristo, e para as quais foram encontradas soluções geniais contra as doutrinas monofisistas. Todavia, na época, sucedeu um período pós-conciliar extremamente agitado e bastante prolongado, que gerou cismas, condenações e reviravoltas de todo tipo. Quarenta anos depois, o imperador de Bizâncio resolveu fazer uma sondagem entre os bispos, para saber quantos deles ainda seguiam as linhas de Calcedônia. O resultado foi desconcertante e surpreendente: pouquíssimos bispos sequer se lembravam de Calcedônia. Hoje, porém, sabemos que sem as definições cristológicas de daquele concilio, o cristianismo teria tomado totalmente outro rumo.

Assim é hoje com o Vaticano II. Todo mundo sabe – quem mais, quem menos – o que representou este Concílio para a Igreja católica. O problema de fundo, porém, é o de saber se é possível no século XXI viver uma fé cristã autêntica sem confrontarmos com a intensidade das perguntas e a profundidade das respostas formuladas pelo Vaticano II ainda não bem assimiladas pelo corpo eclesial. Afinal, todo o caminho pós-conciliar, todos os documentos do magistério, todos os planos de pastoral das Igrejas locais estiveram orientados – por caminhos às vezes bem distintos – para uma recepção positiva das novidades conciliares. O tema da Nova Evangelização, lançado durante o pontificado de João Paulo II, deita raízes no Vaticano II e no desejo da Igreja católica de encontrar um próprio re-assentamento num contexto mundial globalizado, secularizado e multicultural, não mais compreensível dentro ou fora da categoria da cristandade. Com efeito, a questão da evangelização não apenas nos países não cristãos, mas também e principalmente no mundo contemporâneo em quanto tal, é a razão mais profunda da convocação conciliar. 

No entanto, o Vaticano II dividiu opiniões. Assim como aconteceu em outros Concílios, não foram poucas as tentativas de relativizar os impulsos produzidos, procurando desclassificar este imponente evento eclesial a um episódio de segunda categoria por ser intencionalmente “pastoral” e não “doutrinal”. Teria se abusado na compreensão e na abertura conciliar? Ou se teria estancado ou inclusive boicotado o dinamismo renovador do Concílio? O conflito polarizado ganhou dois títulos: a hermenêutica da ruptura e a hermenêutica da continuidade. A primeira teve dois matizes bem distintos: um “tradicionalista”, segundo a qual o Vaticano II teria infelizmente rompido com a sagrada tradição da Igreja; o outro “progressista”, segundo a qual o Concílio teria finalmente rompido com o sectarismo antimodernista. No meio termo, entre as duas posições, estaria a hermenêutica da continuidade, amplamente promovida por Bento XVI, segundo a qual o Vaticano II não promoveu nenhuma ruptura e sim impulsionou uma renovação, “uma reforma na continuidade do mesmo sujeito Igreja”.[2] Contudo, os que utilizam a hermenêutica da continuidade dão ênfase à continuidade mais do que à reforma. Mas a palavra chave para entender corretamente um Concílio do cunho e do porte do Vaticano II é, sem sombras de dúvidas, “reforma”.

A história da recepção conciliar se repete também em outro grave fenômeno, que emergiu com mais evidência nos pontificados anteriores a Francisco, mas que também continua perigosamente a impregnar os bastidores eclesiais, particularmente entre os ministérios ordenados: as novas gerações “não conciliares” parecem dar muita pouca importância ao Vaticano II. No melhor dos casos, escutam ou estudam um acontecimento do passado. Há uma dificuldade que agrava a consciência da relevância do Concílio e da sua recepção: a menor importância que se dá, hoje, na cultura, à consciência histórica e crítica. Quando, por exemplo, um grupo de jovens se organiza para reivindicar uma liturgia anterior ao Concílio, fazendo a afirmação equivocada de que se batem pela liturgia “que sempre foi e sempre será!”, estamos diante de um conflito ideológico por falta de interesse por informações de ordem histórica. Hoje não se pode estudar dogma, liturgia, direito, ética, etc., sem a sua necessária dimensão histórica e seus contextos culturais. Sem história e sem contexto, a tendência é se tornar absolutista. A historicidade ajuda a manter a humildade do caminho e a evitar o absolutismo, próximo das ideologias totalitárias e violentas.

Mas afinal, porque o Vaticano II tem que ser lembrado? O que está verdadeiramente em jogo nesta atormentada recepção que parece não ter fim? Onde estão os nós da questão sobre os quais podemos parar e refletir construtivamente? Esse Concílio surgiu da inspiração inicial de João XXIII de colocar em contato o Evangelho com o mundo moderno, de discernir os sinais dos tempos e enxergar neles motivos de esperança, de convidar a Igreja a um “salto adiante”[3] na necessidade de apresentar os conteúdos da fé com uma nova linguagem e, sobretudo, de promover um amplo engajamento dos cristãos em favor da paz mundial, da unidade das igrejas e da família humana universal. Depois de um longo e conturbado período de preparação, os trabalhos, finalmente, estruturaram-se em torno de dois grandes eixos: o “aggiornamento” ad intra da Igreja e o impulso “pastoral” ad extra de sua missão ao mundo e aos povos. As instâncias cruciais da agenda conciliar foram marcadas pela retomada da dimensão mistérica da mensagem cristã na forte acepção bíblica (volta às fontes); pela redescoberta da dimensão sacramental e missionária da natureza da Igreja, em relação ao Reino de Deus e à sua própria essência trinitária; pelo veemente anseio à unidade dos cristãos; pelo diálogo com o mundo moderno, no limiar de uma mudança de época. Todos esses aspectos podem ser reconduzidos a três grandes imagens carregadas de significado e de relevância que o Vaticano II trouxe para a vida da Igreja: a imponente assembleia episcopal das sessões conciliares; a virada do altar “versus populum”; o uso da língua vernácula na liturgia, no magistério e no ministério eclesial.

A dimensão da renovação eclesial: A grande assembleia

Na noite da solene abertura do Concílio, com o famoso “Discurso da lua”, João XXIII lembrava do “espetáculo que nem a Basílica de São Pedro, com seus quatro séculos de história, nunca pôde contemplar”.[4] Com efeito, o Vaticano II foi um evento universal extraordinariamente impactante, graças também as imagens televisivas que transmitiram para o mundo inteiro a imponente presença mundial da Igreja católica. Foi o mais ecumênico da história da Igreja, com um total 3054 padres conciliares, sendo que participaram do primeiro período 2443 padres e só 1897 tomaram parte dos quatro períodos. O primeiro Concílio ecumênico, o de Nicéia, em 325, foi tradicionalmente chamado de “o grande e santo sínodo dos 318 padres”. O Vaticano I, o último e o mais numeroso até então, contara somente com 642 prelados.

Os participantes do Vaticano II provinham de 116 países diferentes. Dos 2778 convocados para a abertura, 849 eram da Europa Ocidental, 601 da América Latina, 332 da América do Norte, 256 do mundo asiático, 250 da África, 174 do bloco comunista, 95 do mundo árabe, 70 da Oceania.[5] O “espetáculo de universalidade”[6] dos bispos vindos de todas as partes do mundo, na aula conciliar, falava por si. Um evento monumental, portanto, cuja imagem podia inspirar ainda certo triunfalismo, mas que por outro enfoque, na sua concretude, detectava algo de surpreendente e de curioso: quase ninguém tinha visto até então um bispo negro ou japonês. Agora esses sujeitos são a cara do Concílio. Não tardará o Vaticano II a mostrar seu rosto profético, pois não foi só a maior assembleia deliberante talvez jamais vista na história, mas também um foro universal atento aos problemas da humanidade e pelo qual a humanidade demonstrou tão interesse.

Outro elemento significativo foi, sem dúvida, a crescente presença de observadores de outras igrejas. No primeiro período (1962), chegaram a ser 54; subiram para 68 no segundo (1963); no terceiro, já eram 82 (1964); e no quarto, alcançaram a meta de 106 (1965). Ao todo, estiveram presentes no Vaticano II, em um ou mais períodos, 192 observadores ou hóspedes não católicos. Eles não foram espectadores passivos do acontecimento conciliar, mas influenciaram positivamente as sessões e os textos definitivos de diversos documentos. Já desde as primeiras congregações gerais, quando algum orador se referia aos observadores ali presentes, ouvia-se grandes aplausos na aula conciliar.[7] A maior prova da sensibilidade conciliar foi o fato de os representantes das outras igrejas sentirem-se muito bem acolhidos e voltarem em maior número às sessões sucessivas.

A partir destes dados, Karl Rahner, num célebre artigo publicado em 1979, propus uma “interpretação teológica fundamental”, ou seja, “não induzida por fora, mas sugerida pelo próprio Concílio”.[8] Para o teólogo alemão, a realização desse evento representa a primeira auto-afirmação oficial de uma Igreja mundial que se prepara a migrar de um âmbito culturalmente ocidental-europeu para um âmbito universal.[9] Rahner fala dessa passagem em termos de um novo paradigma, “uma nova cesura, ao par daquela que houve na passagem do cristianismo judaico ao cristianismo dos gentios”.[10] Para Rahner, “as coisas estão assim: ou a Igreja vê e reconhece estas diferenças essenciais das outras culturas no meio das quais deve se tornar Igreja mundial, e traz as consequências necessárias com ousadia paulina, ou permanece uma Igreja ocidental traindo assim, no fundo, o espírito do Vaticano II”.[11] Como estão hoje a caminhada de nossas igrejas neste sentido?

A imagem da grande assembleia de outubro de 1962 traz a tona temas fundamentais como o a colegialidade, o Povo de Deus, a participação dos leigos, o papel da mulher, os ministérios ordenados, o valor da Igreja local, a pluralidade dos ritos e das tradições, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Todos assuntos que dizem respeito ao aggionarmento ad intra da Igreja, tão auspicado por João XXIII, e que foi tão bem ilustrado pelo evento abertura. Podemos dizer, sem dúvida, que desde o começo do século XX até hoje um bom caminho foi feito. Se pensarmos que na encíclica “Vehementer nos” de 1906, Pio X ainda afirmava que “a Igreja é por essência uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que abrange duas categorias distintas de pessoas, os Pastores e o rebanho”[12]: os primeiros devem mandar, os segundos devem obedecer. E ponto! É muito claro que o Vaticano II veio mudar radicalmente esse pensamento. Se alguém de outro planeta visse a Igreja católica antes do Concílio e fizesse uma comparação com o que é agora, teria dificuldade a entender que seja a mesma coisa, por quanto os defensores da hermenêutica da continuidade possam se esforçar em afirmar o contrário.

No entanto, há aspectos em que se avançou muito pouco, e em alguns momentos, teve recuos preocupantes. A questão da colegialidade, por exemplo, agora retomada com força por Francisco (cf. EG 16), é um dos enfoques mais problemáticos que ficaram pra trás nas décadas que se sucederam ao Vaticano II. O centralismo romano ganhou um papel despropositado nos pontificados de João Paulo II e de Bento XVI, apesar destas figuras ter feito seus grandes esforços para descentralizar e buscar uma autêntica comunhão segundo o espírito conciliar. Contudo, o sínodo dos bispos, âmbito por excelência em que deveria se expressar a colegialidade episcopal, deixou por demais a desejar, transformando-se logo em um órgão somente consultivo – ou até decorativo! – bastante patrulhado e com uma participação muito superficial de seus atores. Chegou-se ao paradoxo de realizar em Roma os sínodos africano, asiático e americano. Ainda assim foram as primeiras conferências asiática e africana que aconteceram na história. Com Papa Francisco, finalmente, as coisas mudaram de rumo: o sínodo sobre a Família já abriu caminhos para outra dinâmica.

Viveu-se momentos muito tensos entre as Igrejas locais, as Conferências Episcopais e a Cúria Romana, sobretudo por causa das nomeações dos bispos, particularmente na América Latina, mas também em outros continentes. Um autoritarismo centralizador que não era do Concílio, tomou conta da Igreja de cima para baixo, desde o Vaticano, passando pelas conferências episcopais, as dioceses até as paróquias. Se de um lado a categoria de “democracia” não se aplica plenamente à Igreja, por outro, o debate público, a transparência, a participação do Povo de Deus, a ação em conjunto, a responsabilidade comum, a valorização da diferentes das culturas e dos diversos contextos, não ganharam ainda cidadania suficiente, com consequente infantilismo dos leigos e das leigas, subserviência à Igreja de Roma e farisaísmo por parte do clero, a partir do colégio dos cardeais até os presbitérios das dioceses. Francisco não poupou criticas duríssimas neste sentido.[13] Clericalismo é outra palavra que o atual pontífice usa frequentemente ao falar das tentações da Igreja. Essa palavra foi banida em Aparecida: Francisco a recupera com força (cf. EG 102).[14]

E por falar em padres, é triste ver a postura dos jovens presbíteros e seminaristas do mundo inteiro que se identificam um perfil mais conservador, romano, que prima pelo uso de trajes tais como clergyman desde o seminário, e realizam seu trabalho pastoral prioritariamente em paróquias. Tão logo têm a chance de fazer estudos pós-graduados, os novos padres priorizam o Direito Canônico. Os movimentos integralistas e pentecostais fornecem vocações deste tipo, e o preço que a Igreja paga é de um presbitério que não se configura na linha do Vaticano II e nem com o Papa Francisco. Na realidade, talvez é um clero jovem na maior parte das dioceses, ainda em formação, muito desorientado, refém de um clima pós-moderno que tende a recorrer a determinadas expressões estéticas e fortemente identitárias, que reforçam o culto à personalidade, mas que não tem substâncias evangélica. Em conseqüência disso, na maioria das vezes, não passam de um nível de retorno ao sagrado para um nível mais profundo de mudança de vida e conversão de coração.

As denúncias sobre casos de pedofilia, assédios sexuais, escândalos financeiros e outros afins conjugados ao abuso de poder do clero e que tanto marcaram o pontificado de Bento XVI, na sua maioria disseram respeito a presbíteros e bispos com “psicologia de príncipes”.[15] Mas o choque foi muito mais profundo: desacreditou uma Igreja que sempre fez de tudo para abafar os escândalos, dando a mínima importância às denúncias, alimentando assim de maneira hipócrita e extremamente autoritária sua própria imagem e auto-percepção de ser santa e infalível. Os escândalos vieram em boa hora para recuperar uma sadia, evangélica e necessária humildade, e recolocar nos eixos esses desvios de excesso de sacralidade. Sobre o caminho que a Igreja deverá percorrer não resta mais nenhuma dúvida: deverá apostar todo seu futuro na sua capacidade testemunhal de estar próxima ao povo e servir esse povo; na sua capacidade de comunicar verdadeira, participativa e envolventemente; na sua capacidade de estar do lado dos pequeninos, dos pobres e dos sofredores. Essa é a sacralidade pratica que hoje o mundo espera da Igreja.

Enfim, permanecendo em tema de testemunho humilde e de sacralidade prática, outros assuntos permaneceram na interdição ou nos bons propósitos, até nas sugestivas celebrações. De fato, representam tarefas pendentes da renovação conciliar: a participação do povo de Deus nos seus vários segmentos e situações existenciais, o acesso aos ministérios ordenados, o protagonismo das mulheres na vida a Igreja, a pluralidade dos ritos, a liberdade de pesquisa e de expressão teológica, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Aqui estamos ainda por demais atrasados: se fecharam mais portas do que se abriram. Parece que ainda não se entendeu direito que a experiência espiritual da mulher, dos outros, dos pobres, do Povo de Deus na sua globalidade e nos seus desdobramentos, é fundamental para a Igreja se aproximar de um autêntico encontro com Cristo. Os impulsos dados ultimamente por Papa Francisco são relevantes e ousados, por certos aspectos, apontam um caminho que pacientemente deve ser perseguido: mas até chegar aos capilares da vida das diversas igrejas vão precisar ainda de muito chão, porque envolvem, como dissemos, profundas mudanças paradigmáticas de mentalidade. A consciência eclesial geral está ainda muito presa a uma visão tradicional, clerical e patriarcal. Com certeza, nada vai surgir por decreto institucional: as práticas missionárias de base deverão marcar o passo desta renovação.

A dimensão da renovação pastoral: A virada dA mesa

A segunda imagem, a “virada da mesa”, se refaz a uma operação não somente estética ou simbólica: muito pelo contrário ela configura a dinâmica da conversão pastoral promovida pelo Concílio, uma verdadeira “virada popular”, magistralmente expressa por Paulo VI no discurso proclamado em ocasião da conclusão do Vaticano II, como mostram estas passagens:

Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. Com efeito, um imenso amor para com os homens penetrou totalmente o Concílio. A descoberta e a consideração renovada das necessidades humanas absorveram toda a atenção deste Concílio.

Toda esta riqueza doutrinal orienta-se apenas a isto: servir o homem, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades. A Igreja declarou-se quase a escrava da humanidade ...

Tudo isto e tudo o mais que poderíamos ainda dizer acerca do Concílio, terá porventura desviado a Igreja em Concílio para a cultura atual que toda é antropocêntrica? Desviado, não; voltado, sim (...) o nosso humanismo muda-se em cristianismo, e o nosso cristianismo faz-se teocêntrico, de tal modo que podemos afirmar: para conhecer a Deus, é necessário conhecer o homem.[16]

Essa virada antropológica é a postura fundamental impulsionada pelo Concílio Vaticano II, expressão de uma reencontrada atitude evangélica da Igreja em relação ao mundo. Esta postura foi fortemente criticada por ser muito ingênua e excessivamente otimista. Isso aconteceu antes da abertura do Concílio, que levou João XXIII a pronunciar as famosas palavras contra os “profetas de desgraças”[17], e sobretudo depois da conclusão do Concílio pela corrente revisionista que dominou o pontificado de João Paulo II. Segundo a opinião de muitos especialistas, a própria reforma litúrgica não teria sido possível se não tivesse sido realizada ainda durante o Concílio, e logo depois à esteira do Concílio. A Cúria Romana não teria permitido uma coisa dessa.

O que, então, esteve por trás de uma desconfiança e até de uma rejeição crescente do espírito conciliar por parte de diversos setores da Igreja? Com efeito, sempre existiram na Igreja visões distintas de revelação, de salvação e de mundo, que podem ser reconduzidas a duas tradições teológicas que se configuraram no período patrístico: a tradição irineana (Irineu de Lion) e a tradição agostiniana (Agostinho de Hipona). A primeira foi logo eclipsada pela hegemonia da segunda, ainda no mesmo período. O Concílio Vaticano II, mil e quinhentos anos depois, resgatou a tradição irineana, eclipsando a agostiniana, causando a reação enérgica de seus adeptos.

A tradição irineana, fundada numa antropologia unitária, no seio de uma única história, profana e de salvação, tem como pano-de-fundo a unidade entre o Plano da Criação e o Plano da Redenção. A salvação é concebida a partir do Plano da Criação: o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, potencialmente bom. Em Cristo se vinculam o princípio (Alfa) e o fim (Ômega). Nesta perspectiva, para Irineu, “a gloria de Deus é o ser humano vivo e a glória do ser humano é a vida em Deus”. A segunda tradição, o paradigma agostiniano, se funda numa antropologia dualista, confrontada com duas histórias, a profana e a sagrada. A primeira, de perdição e, a segunda, de salvação, tem como pano-de-fundo a separação entre o Plano da Criação e o Plano da Redenção. Como o pecado original corrompeu a natureza criada, a história da salvação começa somente com o Plano da Redenção. Salvação é perdão dos pecados e o caminho da Igreja é a glória de Deus. 

No seio de cada uma destas tradições, a missão da Igreja se configura em projetos distintos. Na tradição irineana, a salvação está em acolher o Reino de Deus também presente fora da Igreja; na tradição agostiniana, a salvação consiste em acolher o Reino na Igreja, pois não existe salvação fora da Igreja. Na tradição irineana, a missão se dá no mundo e para a salvação do mundo; na tradição agostiniana, a missão consiste em incorporar o mundo à Igreja, em sacralizar o profano. A tradição irineana é mais propensa ao diálogo, ao encontro, à aproximação simpática, a inculturação, à valorização do outro e da história humana. A tradição agostiniana enfatiza muito mais o aspecto contra-cultural da mensagem cristã, a identidade e a sacralidade da tradição, a dimensão profética do anúncio mais que a dimensão dialógica. Ambas as tradições fazem parte do rico patrimônio da Igreja e expressam pontos de vistas que, por si, são complementares. Todavia, os destaques que se pode dar a uma ou outra perspectiva, que podem parecer leves acentos, determinam posturas fundamentais e às vezes fundamentalistas.

Não há como negar estas tendências dentro da Igreja: visões, pensamentos, atitudes, nunca foram homogêneas e nunca o serão. A diversidade das visões e das doutrinas faz parte do mesmo depositum fidei, simplesmente porque são determinadas pela diversidade dos contextos históricos onde foram produzidas. E isso é um marco do Vaticano II: a Igreja, pelo mesmo mistério da encarnação do Filho, é uma realidade histórica e mistérica ao mesmo tempo. A disputa de Calcedônia sobre as duas naturezas de Cristo contras as teses monofisistas, retorna com o Vaticano II desta vez enfocando o sujeito Igreja, contra teses que colocam esse sujeito somente no plano sobrenatural. Exatamente como aquele importantíssimo Concílio do V século, o Vaticano II veio a determinar um caminho para a Igreja católica que gera resistências, mas do qual não se pode voltar atrás. A negação da historicidade da Igreja, como também de sua transcendência, é negação, afinal, do próprio mistério de Cristo. Eis, em suma, o significado propriamente teológico da virada do altar “versus populum”, de frente para a história e para a humanidade. E eis o desafio para a Igreja hoje: de que maneira essa chave de leitura se torna paradigmática para interpretar, discernir e avaliar as diversas expressões eclesiais?

As igrejas no mundo inteiro se deparam hoje com fenômenos que as deixam como mínimo perplexas: há pessoas e comunidades que tendem a recolocar a mesa do altar no lugar de antes; há pessoas e comunidades que tendem a eliminar qualquer tipo de altar; há pessoas e comunidades que colocam o altar em qualquer lugar, pois não sabem bem (ou não querem saber) onde o povo está. São fenômenos que o Papa Francisco classificou como “tentações” (cf. EG 77), como atitudes miméticas que se subtraem ao verdadeiro espírito conciliar[18], e que vão sob o nome de “mundanismo espiritual”.[19]

Este mundanismo pode alimentar-se, sobretudo, de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo auto-referencial e prometeico de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a certo estilo católico próprio do passado (EG 94).

São manifestações que têm a ver com a fome de espiritualidade e com o retorno ao sagrado típicos do espírito pós-moderno e da sociedade secular, e que detectam, segundo Francisco, “um relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal” (EG 80). Este fenômeno aponta, sem dúvida e em toda sua ambigüidade, para um sinal dos tempos, inclusive porque, tanto em seu viés carismático como naquele integralista, atravessa as paredes das confissões, das denominações e das religiões. Há sinais não só fundamentalistas, mas também carismáticos inclusive entre judeus e muçulmanos. Contudo, no que diz respeito às igrejas cristãs, algumas estatísticas mais conservadoras apontam para meio bilhão de fieis de coloração carismática. Se de um lado, seria pastoralmente equivocado, por parte da Igreja, desvalorizar estas experiências religiosas, por outro seria também pastoralmente imprudente, à luz do Vaticano II, desconsiderar os seus limites. Estamos diante de algo significativo que expressa um mal-estar e até uma anomalia, ou uma patologia, que necessita ser aproximada e acompanhada, mesmo que dê trabalho aos pastores e às pastoras que devem orientar o discernimento. A Evangelii Gaudium aponta o caminho:

O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época, são fenómenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus (EG 89).

Afinal esta é a tarefa pastoral que o Concílio Vaticano II confiou à Igreja e que se realiza na proximidade a todas as realidades existenciais de hoje. Com efeito, Deus revela em Jesus seu rosto profundamente humano na aproximação a qualquer condição humana e convida qualquer pessoa, povo, sociedade a repensar a vocação humana a partir da vida e da missão cheia de compaixão e misericórdia, gratuidade e perdão de seu próprio Filho: “Jesus Cristo é a resposta total, superabundante e satisfatória às perguntas humanas sobre a verdade, o sentido da vida, a felicidade, a justiça e a beleza” (DAp 380).

Deus fica cada vez mais feliz na medida em que o homem vive bem. A única coisa que nos pede, porque é a única que humaniza plenamente, é aquela de viver como filhos do Pai e como irmãos entre nós. Nada mais e nada menos do que isso; além do mais, este é o cumprimento da Lei e dos Profetas (cf. Mt 7,12). A postura pastoral do Concílio veio nos lembrar que a nossa fé não constitui uma moral, um rito, mas funda e se realiza num humanismo. Amar o humano em todas as suas manifestações e limitações: isto é divino e isto é exigido aos discípulos missionários. O Evangelho não indica as condições para salvar a própria alma: indica de como viver plenamente, humanamente na base do amor gratuito. Ele é recompensa para si próprio.

A dimensão da renovação missionária: a boa nova NA língua dos povos

A terceira imagem que nos remete à dimensão da renovação conciliar é sem dúvida a passagem do uso do latim, como língua usual da Igreja, para o vernáculo. Também esta mudança não foi apenas funcional, e sim repleta de relevância paradigmática e de significados profundos.

Na liturgia, a língua dos povos foi introduzida quase que timidamente pelo Concílio, como possibilidade, conservando, porém, o uso normal do latim (cf. SC 36). A esse respeito é importante olhar para a justificativa dessa receosa abertura, produto de acalorados debates entre os padres conciliares: “dado, porém, que não raramente o uso da língua vulgar pode revestir-se de grande utilidade para o povo, quer na administração dos sacramentos, quer em outras partes da Liturgia, poderá conceder-se à língua vernácula lugar mais amplo” (SC 36.2). O critério missionário foi fundamental e o sucesso desta “eventualidade” foi vertiginoso. Para responder ao pedido urgente de algumas Conferências Episcopais, Paulo VI permitiu antes o Prefácio da Missa em vernáculo (1965), depois todo a Cânon e as orações de ordenação em 1967. Finalmente, em 14 de junho de 1971, a Congregação para o Culto Divino enviou nota afirmando que as Conferências Episcopais podem permitir o uso do vernáculo em todos os textos da Missa.

As razões para a introdução da língua materna não foram intempestivas. Respondiam perfeitamente ao espírito do Concílio e a necessária reforma da liturgia, uma vez que “é desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, consciente e ativa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige e que é, por força do batismo, um direito e um dever do povo cristão” (SC 14). 

Mas deixamos aos apaixonados as argumentações históricas e semânticas do valor da beleza do latim – que ninguém deve desprezar – como língua oficial do Rito Romano. Também não vamos nos demorar em analisar o retorno da Missa Tridentina por parte de alguns grupos, incentivados por Bento XVI. O significado mais profundo da abertura do Vaticano II ao uso da língua vernácula diz respeito à sua índole missionária, portanto, à sua tensão ad gentes e ad extra, ao seu anseio de colocar em contato o Evangelho com o mundo moderno e com todos os povos.

Passar do latim às línguas nativas incluía encarar todos os nós do problema da linguagem e da tradução: volta à fontes, pesquisas detalhadas, abordagem pastoral e popular, o dilema da inculturação, da negociação, da proposição da integralidade da mensagem cristã, etc. Isso, porém, significou também reconhecer que entre os povos existem instrumentos culturais aptos a expressar a fé e que, portanto, todos os povos são capazes de representar criativamente a fé e a tradição da Igreja, através de sua própria cultura. Parte integrante de toda e qualquer cultura são também as diversas expressões religiosas, teológicas e espirituais típicas de cada nação e de cada agrupamento humano.

Francisco assume decididamente esta perspectiva conciliar quando afirma que “o cristianismo não dispõe de um único modelo cultural” (EG 116) e que “é indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (EG 118): 

Não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural (...) A mensagem, que anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja, caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador. (EG 117)

Tudo isso que estamos tratando diz respeito não somente à pluralidade das culturas e dos povos, mas muito mais, para o Vaticano II, às profundas transformações socioculturais que estão acontecendo globalmente no mundo de hoje, a partir do Ocidente, que atingem de maneira estrutural a própria percepção da realidade da humanidade e que vão sob o nome de mudança de época:

Enquanto, em outros períodos da história, os discípulos missionários precisaram dar as razões de sua esperança como consequência de critérios firmemente aplicados, em nossos dias, são os próprios critérios que vêm experimentando abalo. Para não poucas pessoas a incerteza sobre como julgar a realidade e com ela interagir é muito grande. Por isso, estamos em uma mudança de época, pois ela já não atinge somente este ou aquele aspecto concreto da existência. As mudanças de época atingem os próprios critérios de compreender a vida, tudo o que a ela diz respeito, inclusive a própria maneira de entender Deus (DGAE 2011 – 2015, 25).[20]

Trata-se de luzes e de sombras da travessia da família humana (cf. GS 2) que convidam a uma atitude atenta de escuta e de discernimento sobre o que “o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2,29). Diante desses novos sinais dos tempos se faz necessária hoje uma nova recepção do Vaticano II. Os cenários da atualidade nos provocam repensar a missão para que seja sustentada por uma apropriada reflexão teológica, uma conversão interior da Igreja, uma clareza de horizontes e uma ousada ação profética. O Concílio foi um ponto de chegada, mas também representa um ponto de partida: é preciso situar-se no novo contexto, acolher os novos desafios, os valores da modernidade tardia e originar-se continuamente como Igreja, segundo o legado do próprio Vaticano II. Afinal, qual é o sentido de anunciar Jesus Cristo e as exigências de seu Evangelho hoje diante de um mundo secularizado e pluricultural, evitando qualquer fundamentalismo ou relativismo?

Para responder a perguntas como essa o Concílio Vaticano II apresenta, antes de tudo, uma renovada visão resgatando principalmente o fundamento teológico trinitário da missão, na noção da missio Dei. A missão antes de qualquer desdobramento projetual e prático, é uma essência para a Igreja (cf. AG 2), um jeito de ser que tem origem no ‘amor fontal’ do Pai, um amor que não se contém, que transborda, que se comunica e sai de si por sua própria natureza missionária (cf. LG 5; 8; 17; AG 2; DAp 129; 347). A missão vem de Deus porque Deus é Amor, diz respeito ao que Deus é e não, primeiramente, ao que Deus faz. A missão não tem, a princípio, um seu por quê, não surge primeiramente de uma necessidade histórica, mas é um impulso gratuito de dentro para fora que tem como origem e fim a vida divina.

Se a Igreja é “por sua natureza missionária” (AG 2), ela “é” ao ser enviada, ela se edifica somente em ordem à missão. Portanto, não é a missão que procede da Igreja, mas é a Igreja que procede da missão de Deus. Os Atos dos Apóstolos mostram com clareza que a Igreja se constitui na medida em que, aos poucos, assume a missão ad gentes.[21] A missão gera a Igreja. Por isso, a Igreja “nasceu em saída”[22] (cf. EG 17a; 20; 24; 46) no momento em que, orientada pelo Espírito, entra em contato com os outros, e reencontra a si mesma todas as vezes que sai de si e se abre. 

Destes fundamentos teológicos paradigmáticos procede todo o restante dos elementos de uma nova visão missiológica e eclesiológica:

  1. A Igreja não é fim a si mesma, mas está a serviço da missão e do Reino, do qual é princípio, sinal e instrumento (cf. RMi 18).
  2. Esta missão, que é obra de Deus, antecede qualquer ação da Igreja e já se encontra presente e atuante nas culturas e nos povos (cf. AG 9).
  3. Por isso que a comunidade cristã deve se engajar na leitura atenta dos sinais dos tempos e na inserção no âmbito sociocultural onde se for enviada, porque Deus já está ai se revelando.
  4. A salvação e a conversão não são realidade exclusivas trazidas pela Igreja católica, visto que “o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido” (GS 22).
  5. Contudo, a Igreja é chamada a anunciar o Evangelho, que não é a imposição de uma nova obrigação, mas partilha de uma alegria (cf. EG 14).
  6. Para anunciar o Evangelho a Igreja tem que sair de si mesma, tomas iniciativa (cf. EG 24) e ir ao encontros dos outros e dos pobres, como hóspede de uns e companheira dos outros.
  7. Esse anúncio acontece no diálogo com o mundo e com os povos, e também na atitude profética de denúncia contra tudo o que se antepõe à promoção da vida.
  8. Os missionários e as missionárias não são os protagonistas da missão, mas os colaboradores de Deus (cf. AG 15).
  9. Eles são enviados a anunciar a Boa Nova a todos os povos, porque o “a rede de comunicação da fé deve ser humana”.[23]
  10. Todas as igrejas locais participam da missão universal, se articulando, colaborando, solidarizando uma com a outra, privilegiando aqueles contextos marginalizados onde o Evangelho não foi anunciado, a comunidade cristã não está presente e o Reino de Deus precisa ainda se afirmar no sinal de uma sociedade justa, fraterna e solidária.

Evidentemente, toda essa nova visão de missão não se encarnou de maneira satisfatória na ação evangelizadora de nossas igrejas, por causa do paradigma teológico da missio Dei ainda não estar bem assimilado. Um exemplo disso está na Lista Final das Propostas do Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização (outubro de 2012).[24] Na Proposta 4 se declara: “A Igreja e a sua missão evangelizadora têm sua origem e sua fonte na Santíssima Trindade, segundo o plano do Pai, a obra do Filho e a missão do Espírito Santo. A Igreja continua esta missão do amor de Deus em nosso mundo”. No entanto, Papa Francisco na Evangelii Gaudium afirma: “Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus, que quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do seu Espírito” (EG 12).

Na primeira afirmação, a Igreja é concebida como uma entidade estabelecida que leva adiante a missão de Deus no mundo. Ou seja, o Pai deu origem à missão, o Filho fez sua parte o Espírito também: agora é a vez da Igreja continuar essa obra. Por sua vez, porém, Francisco garante que Deus continua sua missão e a Igreja é chamada apenas a colaborar. Esses não são pequenos ajustes redacionais: são elementos teológicos relevantes e reveladores de uma recepção do Vaticano II ainda não bem acabada. 

Conclusão

Diante dos desafios do mundo contemporâneo, a assembleia conciliar tinha a convicção que não seria possível renovar “o fervor, os métodos e as expressões” da ação missionária da Igreja, segundo um célebre aforismo de João Paulo II[25], sem que esta não repensasse seriamente na sua própria conversão e na sua própria maneira de entender a fé. Tal critério nem sempre foi assimilado com todas as suas consequências pelos diversos sujeitos eclesiais:

Muitos viveram um verdadeiro conflito. Por um lado queriam que a missão da Igreja respondesse adequadamente aos novos cenários e desafios que se apresentavam, mas por outro não estavam dispostos a mudar nada ou muito pouco de suas antigas maneiras de interpretar a fé cristã. Alguns inicialmente pensaram que, por ser um Concílio de caráter pastoral, tratava-se unicamente de mudança nas formas de trabalho, nos métodos e na organização, esquecendo que por trás disso tudo estavam primeiramente as mentalidades teológicas, as atitudes e o estudo sério das novas situações dos homens e mulheres contemporâneos.[26]

Por outro lado, Papa Francisco lembra a toda Igreja que não é possível pensar mudar mentalidade sem antes “sair” da auto-referencialidade para as periferias existenciais. Quando estaremos “fora” dos nossos âmbitos, poderemos perceber mais claramente quais são as mudanças paradigmáticas significativas a ser processadas e interiorizadas. Há um círculo hermenêutico entre teoria e prática, identidade e missão, ad intra e ad extra. 

Contudo, a necessidade de uma profunda metanoia é o ponto central da relevância do Concílio Vaticano II para a vida e a missão da Igreja no século XXI. Já João Paulo II lembrava, em sua encíclica missionária, da urgência de uma “conversão radical da mentalidade” (cf. RMi 49). Mas foi o Documento de Aparecida a dar uma ênfase decisiva à “conversão pastoral” não apenas dos corações, mas sobretudo das estruturas (cf. DAp 365). Para os bispos latino-americanos precisamos ser evangelizados de novo para tornar-nos cheios de ímpeto e audácia evangelizadora (cf. DAp 549).

E para falar em ímpeto e audácia evangelizadora, será que ao conjunto da Igreja não falta um pouco daquela ousadia paulina para implementar essa renovação conciliar, 50 anos após a conclusão de um evento tão épico e universal como o Vaticano II? Ainda no primeiro século, a abolição da circuncisão para os cristãos vindos do mundo pagão gerou um embate crucial, conturbado e extremamente dolorido (cf. Gal 2,11-14), que induziu a igreja apostólica a convocar o concílio de Jerusalém. Ora, a abolição da circuncisão era algo inaudito, impensável, por demais transgressor: não foi prevista por Jesus e nem podia ser deduzível de seus ensinamentos. Pois Paulo faz desta revogação um princípio fundamental de sua evangelização aos gentios e de uma nova maneira de entender a fé. A circuncisão representava para os judeus o elemento central da consagração do fiel a Deus. Para Paulo, ao contrário, o que contava era a ação da Graça. Perguntamo-nos o que falta ainda para a Igreja tomar decisões deste tipo, e com essa argumentação, em favor de aspectos muito mais simples como a comunhão aos divorciados, os ministérios ordenados a pessoas casadas ou a participação das mulheres na vida da Igreja?

A resposta talvez nunca chegue por decretos institucionais, que vêm mais a ratificar do que a promover. Serão as práticas missionárias de discípulas e discípulos que não tem medo de anunciar Jesus Cristo a todos, que abrirão veredas e caminhos, marcando o passo para a conversão de uma Igreja sempre mais peregrina, companheira e pascal.


[1] Segundo a interpretação de Karl Rahner: cf. Rahner, K. Interpretazione teologica fondamentale del Concilio Vaticano II. In: Rahner, K. Sollecitudine per la Chiesa, p. 343.

[2] Cf. BENTO XVI. Discurso à Cúria Romana, em 22/12/2005.

[3] Cf. JOÃO XXIII. Discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 11/10/1962.

[4] Giovanni XXIII. Saluto del Santo Padre ai fedeli partecipantoi della fiaccolata in occasione dell´apertura del Concilio Ecumênico Vaticano II. Disponível em : http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/it/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_ spe_19621011_luna.html. Acesso em 19/12/2014.

[5] Sobre o total de 2778, faltam os dados de 151 padres. Esses números estão em: RAGUET, H. Fisionomia inicial da assembleia. In: ALBERIGO, G.; Beozzo, J.O. (Coords.) História do Concílio Vaticano II. A formação da consciência conciliar. O primeiro período e a primeira intersessão (outubro 1962 a setembro de 1963). Tradução João Rezende Costa. Petrópolis: Vozes, 2000. v. II, p. 169.

[6] Assim o chamará também Paulo VI, em seu discurso de abertura do segundo período..

[7] Cf. ibid. p. 178.

[8] Rahner, K. Interpretazione teologica fondamentale del Concilio Vaticano II. In: Rahner, K. Sollecitudine per la Chiesa. Tradução Carlo Danna. Roma: Paoline, 1982, p. 343.

[9] Cf. ibid., p. 344.

[10] Ibid., p. 355.

[11] Ibid, p 357.

[12] PIO X. Vehementer nos, 8. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/pius-x/en/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_11021906_vehementer-nos.html>. Acesso 1m: 20/12/2014.

[13] “O Cardeal – digo-o especialmente a vós – entra na Igreja de Roma, Irmãos, não entra numa corte. Evitemos todos – e ajudemo-nos mutuamente a evitar – hábitos e comportamentos de corte: intrigas, críticas, facções, favoritismos, preferências”. Francisco. Homilia na Santa Missa com os novos cardeais, 23/02/2014. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2014/documents/papa-francesco_20140223_omelia-nuovi-cardinali.html>. Acesso em 20/12/2014.

[14] Cf. Cf. FRANCISCO. Discurso do Santo Padre aos bispos responsáveis do Conselho Episcopal Latino-Americano por ocasião da Reunião Geral de Coordenação. Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013.

[15] Expressão do próprio Francisco: cf. ibid.

[16] PAULO VI. Discurso na última sessão pública do Concílio Vaticano II. Roma, 7 de dezembro de 1965. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/speeches/1965/documents/hf_p-vi_spe_19651207_epilogo-concilio.html>. Acesso em 13/5/2015.

[17] Cf. Discurso de abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II (11 de Outubro de 1962), 4, 2-4: AAS 54 (1962), 789.

[18] Cf. FRANCISCO. Discurso do Santo Padre aos bispos responsáveis do Conselho Episcopal Latino-Americano por ocasião da Reunião Geral de Coordenação. Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013. Disponível em: <http:// www.vatican.va/holy_father/francesco/speeches/2013/july/documents/papa-francesco_20130728_gmg/celam-rio_ po. html>. Acesso em: 26/10/2013.

[19] O mundanismo espiritual não é a única tentação dos agentes pastorais que o Papa elenca na sessão da Evangelii Gaudium que vai dos números 76 a 109. É sem dúvida, no nosso modo de ver, a mais marcante e aquela que sintetiza as outras, com a intuição que o verdadeiro imanentismo “se esconde por detrás de aparências de religiosidade” (EG 93).

[20] Um exemplo sugestivo desta nova maneira de compreender a realidade, pode ser representado pela visão cosmológica que a humanidade adquiriu graças ao avanço da ciência e da tecnologia: “Se imaginarmos que nossa história de 15 bilhões de anos foi reduzida a um único ano: a galáxia da Via Láctea se organizou no fim de fevereiro, nosso sistema solar surgiu da nebulosa elementar de uma supernova no início de setembro; os oceanos planetários formaram-se em meados de setembro; a Terra acordou para a vida no fim de setembro; o sexo foi inventado no fim de novembro; os dinossauros viveram durante alguns dias no início de dezembro, as plantas florescentes explodiram em cena com uma sucessão de cores em meados de dezembro e o universo começou a refletir conscientemente no ser humano e por meio dele, com escolha e livre-arbítrio, menos de dez minutos antes da meia-noite de 31 de dezembro. Nessa escala de 12 meses, Jesus teria nascido em 31 de dezembro, às 11h59 da noite. As maiores descobertas científicas desse século estariam no último segundo antes do fim do ano”. MORWOOD, Michel. O católico de amanhã. Para entender Deus e Jesus em um novo milênio. São Paulo: Paulus, 2013, p. 32.

[21] No começo, havia um grupo judaico que aguardava ansioso a restauração do reino de Israel (cf. At 1,6). Em Pentecostes, com a vinda do Espírito sobre a comunidade reunida, Pedro proclama com coragem a Boa Nova, porém somente a judeus (cf. At 2,5). Deste momento em diante os discípulos de Jesus começam tomar consciência de serem chamados além de si mesmos, a ir a todos os povos, ao passo que o Espírito os empurra a incluir os samaritanos (cf. At 8,17), os prosélitos (cf. At 8,37), os tementes a Deus (cf. At 9,42), os pagãos merecedores (cf. At 10,45) e, enfim, os pagãos em massa (cf. At 11,21).

[22] FRANCISCO. Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2014.

[23] PAULO VI. Il piano storico e sociale di Dio nel mondo. Udienza Generale. Roma, 6 agosto 1969. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1969/documents/hf_p-vi_aud_19690806.html>. Acesso em: 13/5/2015.

[24] Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB). A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã. Sínodo dos Bispos – XIII Assembleia Geral Ordinária. Homilias e Pronunciamentos do Papa Bento XVI. Mensagens ao Povo de Deus e Propostas dos Padres Sinodais. Brasília: CNBB, 2013.

[25] Cf. João Paulo II. Discurso à XIX Assembleia do Celam, Port-au-Prince, 9 de Março de 1983, n. 3.

[26] Arroyo, Francisco Merlos. O Concílio Vaticano II: referência imprescindível da Igreja atual. In: BRIGHENTI, Agenor; ARROYO, Francisco Merlos. O Concílio Vaticano II: batalha perdida ou esperança renovada? São Paulo: Paulinas, 2015, p. 27-28.

Raschietti Stefano sx
25 August 2015
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