Skip to main content

Decolonizar missão: a partir da nossa espiritualidade

774/500
  1. Missão colonial

Estou acompanhando apaixonadamente os estudos de pe. Estevão Rasquietti s.x. pois me parecem justos, fundados e de grande atualidade. Há também um fato pessoal. Tenho a impressão de que é um problema pelo qual sofri a expulsão da região xaveriana do Brasil no ano 1972. Quando voltei do capítulo geral do 1971 (11 janeiro 1972) foi me proibido de entrar em casas de animação e formação xaverianas pois durante o capítulo tinha defendido a ideia de que non era mais possível continuar no Brasil com seminários iguaizinhos, em horários e método, dos italianos. Jaguapitã tinha os mesmos horários e as mesmas divisas de Ancona. Não sei por que tinham escolhido Ancona, mas era o modelo de que me falavam quando fazia objeções a respeito dos horários e da roupagem: respeito à Eucaristia era o paletó na missa! Mesmo quando o calor fazia os meninos desmaiar. Em noviciado nos encontros formativos utilizavam-se os esquemas fotocopiados em San Pietro in Víncoli...

Eu não utilizava as terminologias científicas assim como não falava em colonização, mas em minhas escutas dos meninos e minha experiencias pastorais durante as férias escolares em Goio-ere, em Janiópolis, o trabalho com os jovens do T.L.C. me tinham convencido que as casas de formação e animação não poderiam ter moldes iguais às italianas, hoje talvez diria, não podem ser colônias das comunidades da Itália.  

Para mim era claro o que deveria terminar, muito menos claro, na época, o que deveria ser. Seguramente errado era (e também hoje é errado) continuar sem novas e inéditas tentativas, sem riscar com novas experiencias. Durante o capítulo tinha encontrado confrades que defendiam a necessidade da diversificação de acordo com as culturas. Talvez não se utilizasse esta palavra, não tenho aqui as atas do capítulo!

Agora não somente os seminários, mas a “missão ad gentes” em sua totalidade está sendo questionada. Escreve pe. Estevão em COMUNHÃO E MISSÃO julho 2021:

«Quando dizemos "missão ad gentes", dizemos "missão colonial"... continuamos visceralmente coloniais em nosso modo de ser, de pensar, de agir que consideramos absolutamente naturais, quando ao invés não fazemos nada além de revelar nosso etnocentrismo».

Tinha lido há alguns anos nos meus pobres tentativos de formação permanente:

«O empreendimento missionário moderno em sua integra está tão contaminado por sua origem no colonialismo ocidental e sua estreita associação com ele, que é irremediável; temos que encontrar uma imagem completamente nova hoje»[1].

  1. Completamente nova!

Por isso é que me deixa inquieto a imobilidade em que vivemos. Temos teorizado a todos os níveis: criatividade, ousadia, novidade... E agora também com estudos doutorais como a tese de p. Estevão justamente premiada, mas nós continuamos numa mesmice que dá medo.

O meu voto de missão ou, se não queremos usar este termo manchado de colonialismo, a minha consagração a Deus «pela evangelização dos não cristãos» (C83 1) me estimula a procurar, a tentar, a criar algo de novo, de diferente seja a nível de programação e atuação (não cabe aqui) seja a nível diálogo e reflexão entro nós, os xaverianos.

Os Verbitas (Missionários do Verbo Divino) decidiram em capítulo Geral de mudar o termo “missão” em “Diálogo profético”[2]. David J. Bosch fala em “audácia humilde”[3].

Pe. Estevão afirma-se que «O termo “missão” nasceu no século XVI». Verdade, no sentido que nós damos hoje a esta palavra, mas pergunto: não era utilizado esse termo antes do século XVI para tentar falar do mistério da Santíssima Trindade? Não seria possível lançar uma ponte entre o século XXI e os séculos que precedem o XVI? Por que, nós missionários xaverianos, não tentar um itinerário, estudando os textos e vivendo a espiritualidade do Fundador?  Procuremos no baú dos tesouros doutrinais e espirituais de São Guido. Precisando de termo novo, procuro primeiro em casa!

Conforti parece lançar uma ponte e voltar antes de Colombo (1451-1506) e Galileu (1564-1642), recorda as colônias com olhos críticos[4] e reinicia pela Trindade ou melhor, pelo Pai. Conforti não utiliza a palavra missão, mas “comunicar”.

«Sim, ele é Pai ab æterno, ele é o ser, a fonte do ser, a grande fonte vivente da vida. Ele, de modo inefável e necessário, comunica imediatamente o próprio ser, a própria vida ao seu Verbo semelhante, consubstancial a ele em virtude de sua geração e, neste sentido somente ele é Pai, podendo, desta forma dizer ao Verbo: Tu és o meu filho, do meu seio eu te gerei, antes que existisse a luz. E o Verbo encarnado, por sua vez, com verdade pode dizer a todas as gerações humanas: Quem me vê, vê o Pai que me enviou, porque o Pai está em mim e eu estou nele (Jo 14,9-10)»[5]

Pai, definido como fonte: fonte do ser, fonte da vida. Fonte é origem de um rio, água que corre bem-fazendo em todos os lugares onde passar. Comunica vida sendo a primeira etapa dessa comunicação o Verbo eterno, o Filho. O rio não para, chega pelo Filho a todas as gerações humanas. A vida para todos e todas!

O Deus de São Guido extravasa de si mesmo e nós o podemos conhecer, apesar de habitar in luz inacessível. Pai criador da pessoa humana, Pai em Jesus, Pai visível na natureza.

  • Pai por ser criador fazendo da humanidade uma única família:

«Deus nosso criador, nosso Pai, nosso amigo, nosso irmão; que nos olha e nos escuta, que sorri, benévolo, às nossas homenagens e aos nossos afetos»[6].

«Feitos para a vida em sociedade, precisamos ter presentes os deveres que devem orientar nossas relações com o próximo. Eles se encontram resumidos na caridade fraterna que nos impõe, antes de tudo, a estima e o respeito aos outros, porque são iguais a nós, filhos do mesmo Pai, redimidos a um mesmo preço, e destinados à mesma glória celeste»[7].

  • Pai que se autocomunica pelos gestos humanos do homem: Jesus de Nazaré. A família humana ganhou um irmão:

«Vive um homem, um filho de Adão, nosso irmão segundo a carne que é Deus!»[8] 

«A fé nos falou por meio de Jesus Cristo que sendo Deus é sabedoria infinita, e verdade inefável, e sendo homem é o amigo, nosso irmão adorável e santo»[9].

«Insatisfeito das comunicações além de si mesmo realizadas pela criação, colocando em todos os seres em modo às vezes mais outras menos perfeito sua imagem; insatisfeito de ter comunicado aos seres humanos sua vida divina, pela graças santificante enaltecendo-o à ordem sobrenatural: Ele quis se unir à natureza humana com união mais estreita, a mais intima que possa ser imaginada; quis que a própria Pessoa de seu Filho se unisse à natureza humana de modo a ter possibilidade de afirmas: “Eu e o Homem somos um único ser, uma sola coisa»[10].

  • Pai, contemplado por São Guido como rio que transborda e inunda o universo inteiro, orientando nossa atenção para a conversão ecológica[11]:

«Ó Pai do Céu, seja mil vezes bendita a onipotente bondade com a qual derramastes por toda parte o bem, a beleza, o ser, a vida! Estrelas da noite e da manhã, montanhas, florestas, vales fecundos, mar imenso, rios, riachos e orvalhos, monstros do abismo, ágeis habitantes do ar, moradores selvagens do deserto, rebanhos tímidos e dóceis de nossa planície, pela boca do homem filho de Deus, repeti, cantai Pater noster – Pai nosso (Cf. Sl 148 e Mt 6,9)»[12].

Acredito possamos concluir com David J. Bosch:

«A missão possui sua origem no coração de Deus. Deus é uma fonte de amor que envia. Esse é o manancial mais profundo da missão. É impossível penetrar mais fundo; existe a missão porque Deus ama as pessoas. Reconhecer que a missão é de Deus representa um avanço crucial em relação aos séculos precedentes. É inconcebível voltar de novo a uma concepção estreita e eclesiocêntrica da missão»[13].

  1. Ação de graça e desafio

Ação de graça pelas nossas constituições de 1983 (C83). Não conhecíamos ainda todos os escritos de São Guido Maria Conforti, fundador dos missionários xaverianos e arcebispo, bispo de Parma. Das pesquisas de Pe. Franco Teodori s.x. conhecíamos somente 6 ou 7 volumes; o volume das homilias catequéticas, uma nascente de sabedoria pastoral, doutrina e espiritualidade, saiu somente em 1997[14], apesar disso o capítulo especial conseguiu acertar o pensamento confortiano. O centro não é a Igreja, mas o Reino. A Igreja é “semente e sacramento” do Reino (C83 7) e “comunhão e fraternidade nova em Cristo” (C83 35). A família xaveriana tem como sujeito primário o Espírito Santo, Conforti foi o instrumento, o mediador (C83 1. 35) o escolhido para nos transmitir uma “experiencia do Espírito” (C83 52). O texto constitucional xaveriano utiliza ainda o termo “missão”, mas o liberta (não sei se consciente ou inconscientemente) de qualquer ligação colonial de fato “nossa missão nos pede de proclamar o Reino [...] O reino de Deus que tem sua origem e seu cumprimento no amor trinitário, se manifesta e se realiza na comunhão dos homens com Deus e entre si” (C83 7. 8).

Missão, palavra “contaminada”!

Estamos em frente de um desafio. Com que substituir o termo que nos os colonizadores “cobiçosos de exportar as riquezas da terra”[15] ? Nos textos acima lembrados Conforti utiliza o verbo: “comunicar”. Em seu baú encontro mais dois termos (pode haver mais) a partir dos quais poderíamos tentar algo novo: coragem, ousadia, criatividade...

Com a palavra “manifestar” acredito seja possível traçar um itinerário que a partir da Trindade chegue ao universo inteiro:

«O mistério da Trindade naquele momento (batismo de Jesus) iniciava a se manifestar sempre mais claramente de forma a preparar a humanidade a acolher os demais mistérios que Jesus iria revelar à terra em seguida. Escutou-se a voz do Pai, foi visto o Espírito Santo pairando sobre a cabeça do Verbo humanado, e deste modo tornou-se manifestada a Trindade das pessoas divinas»[16]

A comunidade cristã, a Igreja, deve manifestar Jesus Cristo[17]. Conhecemos as palavras do Testamento, mas vale a pena lembrá-las:

«Em tudo nos inspiraremos nele para que nossas ações exteriores sejam a manifestação da vida de Cristo em nós» (LT 7).

A Direção Geral, em sua carta de abertura do ano Jubilar (3), nomeia o lugar de missão de “epifania”.

«É interessante lembrar como saíram para em missão muitos nossos confrades, em quais condições, as dificuldades encontradas... e como transformaram “aquele lugar” em epifania do Senhor. Comovente!»

São Guido com significativa insistência utiliza um termo incomum: “riverbero”, revérbero, reflexo, brilho, clarão. Não é este o lugar para entrar numa pesquisa completa, será suficiente dizer que da Trindade onde “é a luz, sempre luz, e em todo lugar, luz”[18] jorra um rio de luz que alcança o universo inteiro:

Todo o universo não passa de ser um reflexo da gloria deste Ser infinito, imutável[19].

Naturalmente passando pelo Verbo feito carne e pelos apóstolos que fazem chegar este rio de luz a todos os povos e em todos os tempos.

«Cristo, revérbero de todas as perfeições divinas, tornadas acessíveis a nosso olhar e à nossa imitação»[20].

«Por isso depois de sua auto apresentação: “eu sou a verdade e quem me segue não caminha nas trevas” acrescentou dizendo aos apóstolos: “Vocês são a luz do mundo” para adverti-los que eles deveriam ser brilho dessa verdade»[21].

Os textos do Fundador poderiam ser multiplicados, mas a brevidade aconselhou uma citação a cada item. Parece-me, porém, o mínimo necessário para a reflexão a que convida COMUNHÕ E MISSÃO de julho 2021.

Podemos falar em missão sem utilizar a palavra “missão” e tentar o utilizo de “comunicar”, “manifestar”, “epifania”, “revérbero”... O desafio está lançado, vamos estudar os 28 volumes de Franco Teodori e dialogando produzir algo de novo.    

Vamos acolher o convite do Superior Geral, pe. Fernando (Quaresma 2021):

Allontana da te con forza la tentazione della monotonia, della routine, del “grigio”, dell’immobilità, del disincanto, del ‘déjà vu’, e apriti con gioia alla sorpresa che il Signore ha riservato per te nel momento concreto che stai vivendo.

Alfiero Ceresoli s.x.

(Nota: para significar que a palavra importante é a do Fundador, as minhas são em fonte menor: 10) 


[1] Rütti Ludwig citado por Bavid J. Bosch MISSÃO TRANSFORMADORA4; 2014, Sinodal, São Leoporldo RS, p. 617.

[2] Steven B. Bevans, Roger P. Schroeder, EMI Bologna 2014 pp. 97-193. Traduzido em português por Pe. Estêvão Raschietti, sx e Pe. Joachim Andrande, svd. Trabalhei sobre o texto italiano desde 2015, por isso continuo citando o italiano.

[3] Cfr. Obra citada nas pp. 610-617.

[4] As suas memorias a respeito das colônias são sempre negativas, um exemplo: «A perversidade das nações europeias que se lançam sobre as terras descobertas com a rapacidade sanguinária do abutre que se atiram sobre a preda» (1892, outubro, Parma, artigo preparado para comemorar Cristoforo Colombo, FCT 8°, pp. 860-862).

[5] 1918, 1º de novembro, Parma – Catedral. Homilia “Patrem omnipotentem”; FCT 17, 153.

[6] 1917, 14 de janeiro, Parma – Catedral. Homilia “Pater noster”; FCT 17, 13.

[7] 1919, fevereiro, Parma - Manuscrito “A Palavra do pai”; Pagine Confortiane, 309)

[8] 1919, 8 junho, Omelie sul Credo, FCT 17, p. 217. 

[9] 1921, 1º novembro, ivi p. 409.

[10] 1919, 8 Giugno, Parma, Omelie sul Credo, qui conceptus est de Spiritu Sancto, natus ex Maria Virgine; FCT 17° 217.

[11] Cfr. Papa Francesco, Laudato si’.

[12] 1917, 14 de janeiro, Parma – Catedral. Homilia “Pater noster”; FCT 17, 6-8.

[13] Obra citada p. 470.

[14] Beato Guido Maria Conforti, OMELIE CATECHETICHE, Padre nostro, Credo, Sacramenti, Libreria Editrice Vaticana /, Città de Vaticano 1997. Dei volumi di pe. Teodori è il n. 17.

[15] Conforti em DP 12. 22.

[16] 1920, 6 de janeiro, Omelie sul Credo, credo nello Spirito Santo em FCT 17° 277

[17] Veja por exemplo 1920, 8 de dezembro, Parma, Omelie sul Credo, credo Sanctorum Comunionem, em FCT 17° 343

[18] 1921, 27 marzo. Parma, Omelie sul Credo, em FCT 17° 393.

[19] 1918, 15 agosto, Parma, Omelie sul Credo, em FCT 17° 137-148

[20] 1918, agosto, La Verna, Manuscrito “A Palavra do pai”; Pagine Confortiane, 303.

[21] 1925, 1° de Janeiro, Parma, Omelie sui Sacramenti, Ordine em FCT 17° 540

Alfiero Ceresoli sx
20 Agosto 2021
774 Vistas
Disponible en
Etiquetas

Enlaces y
Descargas

Esta es un área reservada a la Familia Javeriana.
Accede aquí con tu nombre de usuario y contraseña para ver y descargar los archivos reservados.